A SOHO e o WUF

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O noticiário sobre a epidemia do coronavírus e as chuvas torrenciais na cidade de São Paulo nesta última semana, colocaram em destaque a opção adotada por várias empresas, que levaram uma parte da sua força de trabalho para “home office”. Na capital paulista, além das residências, os espaços de “corworking” tornaram-se opções para muitos profissionais. No pior dia de alagamentos, a multinacional Regus abriu gratuitamente seus 54 endereços na cidade para abrigar profissionais ilhados em seus carros – buscando alcançar seus escritórios sem sucesso. Para muitos, neste dia, tornou-se conhecida a nova arquitetura organizacional do trabalho no Século XXI: o “Small office. Home office” ou SoHo.

Há anos a crescente digitalização dos processos de trabalho oferecem opções para a reforma das arquiteturas organizacionais das empresas. Muito especialmente, para aquelas organizações ligadas à indústria do conhecimento e muitas outras do setor de serviços das economias modernas. E ainda que em tais segmentos estejam os exemplos SoHo mais avançados no uso de equipes geograficamente dispersas, está lenta a disseminação deste modelo de organização da força de trabalho entre grandes corporações, no Brasil ou no exterior. No entanto, a SoHo, quando adotada em larga escala, poderá contribuir para a solução de muitos problemas que nos afligem hoje.

Mas antes que os críticos se levantem, nos permita concordar que o SoHo não é aplicável em todos os processos de trabalho. É certo. Tanto quanto é correto esperar que o modelo de organização do trabalho baseado na reunião de equipes ao lado de linhas de produção nas fábricas, ou mesas de trabalho nos escritórios e escolas modernas irá cair. A robótica, a inteligência artificial e o aprendizado de máquinas, só para ficar nestas três tecnologias, são poderosas para implodir a infraestrutura da Revolução Industrial que afastou os artesãos dos seus ateliês e oficinas domésticas, para agrupá-los ao lado das linhas de montagem e circuitos de documentos entre mesas dos escritórios ou carteiras escolares. Quando a infraestrutura muda, as superestruturas sociais desabam. E não será necessária nenhuma revolução de classes em busca do controle dos meios de produção para tanto.

Como aconteceu no passado, os ludistas modernos podem se apegar em estruturas mentais superadas, mas ainda pouco sentidas, ou estatísticas de experiências pontuais mal implementadas quando querem justificar a opção pela centralização de equipes em escritórios – em lugar de promover a sua descentralização em larga escala. Nós ainda somos formados em escolas que centralizam as turmas de alunos como método de ensino – tal e qual a fábrica do Século XIX assim nos projetou como seres da Era Industrial. Nós ainda exploramos pouco o desenvolvimento de métodos, métricas e instrumentos para a formação real e profunda de uma mão-de-obra em larga escala, sem fronteiras. Sim, vai acontecer e os primeiros experimentos como os TEDs e a disseminação do EAD – Ensino à Distância aparecerão como ensaios na histórica contada no futuro.

Muitos enxergam na construção das deslumbrantes sedes dos oligopolistas tecnológicos norte-americanos da FAAMG (Facebook, Apple, Amazon, Microsoft e Google) uma prova de que a centralização das equipes produtivas é indispensável. A sul-coreana Samsung ou a chinesa Alibaba não negam a afirmação, pois foram muito além e construíram verdadeiras cidades digitais para a centralização das suas equipes. No entanto, cabe alertar, que além dos resquícios da velha escola, a necessidade de mão-de-obra qualificada de grandes centros de excelência acadêmica, a necessidade de sigilo de projetos e proteção de propriedade intelectual e muitos outros fatores, explicam melhor tais monumentos, do que as vantagens da arquitetura organizacional centralizada frente ao uso de times geograficamente distribuídos. Uma longa discussão propícia ao desenvolvimento de belos estudos de caso se faz necessária para explorar cada empresa aqui citada.

Estes gigantes corporativos por certo contribuiriam muito mais se gastassem os bilhões de suas sedes em pesquisa e desenvolvimento para construir métodos, métricas e instrumentos ainda mais avançados e realmente seguros para a descentralização das suas forças de trabalho. Enquanto as grandes corporações globais – sejam elas do setor de tecnologia da informação ou não, juntamente com os marcos regulatórios legais e infralegais, não facilitarem o processo de descentralização dos seus times, adotando este modelo de arquitetura organizacional, o “coworking” e o “home office” continuarão sendo culturalmente associados com “startups”, “freelancers” e pequenas empresas com negócios alternativos. Para muitos, como já ouvimos, “isto não é coisa de empresa de verdade”. Bem amigos … sem comentários. Não é só preconceito, é simples falta de leitura.

Impressiona, também, que ambientalistas e estudiosos da crise climática em geral, promovam campanhas gigantescas focadas nos mares e nas florestas – quando igualmente indispensável é conter urgentemente a origem da poluição dos centros urbanos. E nas cidades a mobilidade, energia e geração de resíduos serão muito menos poluidores com a adoção generalizada da arquitetura SoHo pelas empresas de todos os tamanhos. Com a licença dos queridos amigos no World Wildlife Fund (WWF) gostaria de propor aqui a criação do World Urbanlife Fund (WUF), tornando-o um instrumento igualmente efetivo de luta contra os efeitos da crise climática e preservação do “homo sapiens” em extinção. E como principal linha de ação do WUF, nos permitiria propor a pesquisa, o desenvolvimento e a disseminação global da arquitetura organizacional da força de trabalho em times geograficamente distribuídos instalados em “Small offices e Home offices”.

A adoção da arquitetura SoHo contribuiria tanto para a redução da poluição dos grandes centros urbanos, auxiliando na solução da crise climática, que as Nações Unidas e todos os Acordos do Clima deveriam criar severas punições para os Países que não adotam incentivos para que, as suas corporações se reorganizem descentralizando os seus quadros. No entanto, não se toca no tema que nos parece tão óbvio. A transferência para “Home Offices” ou para “Small Offices” de bairros próximos das residências dos profissionais que podem trabalhar em tal arquitetura organizacional, certamente diminuiria o uso de células de transporte e mobilidade poluentes – amenizando os horários de pico nos deslocamentos das populações, dentro de cada dia e ao longo dos dias da semana. A reciclagem de resíduos descentralizada, a geração distribuída de energia e a disseminação de soluções de micromobilidade seriam incentivadas por novas demandas vindas da arquitetura SoHo.

Vale lembrar, não é preciso somente deixar de poluir, mas é essencial também limpar o meio ambiente do estrago já feito. Aqui, mais uma vez, soluções SoHo facilitariam as ações de microgerenciamento e racionalização de recursos, quando associados aos incentivos financeiros corretos. No Brasil, isto já aconteceu com a política de gerenciamento de demanda na crise de energia em 2001, com punições pecuniárias nas contas de luz das residências que excediam os consumos da média móvel trimestral. Não é nenhuma novidade. Acrescente também que o SoHo demandaria menos espaços de escritórios por refrigerar, menos elevadores, menos bombeamento de água em grandes prédios, etc…

As contribuições para a infraestrutura são tantas, que não há como entender que o Ministério da Infraestrutura, juntamente com outros Ministérios como o das Cidades e o de Ciência e Tecnologia, não coordenem ao menos um (que seja) programa agressivo de incentivos ao uso da arquitetura organizacional baseada em times distribuídos, como parte de um extenso conjunto de medidas de incentivo ao uso racional da infraestrutura disponível em grandes centros urbanos. A lógica tem sido puramente expandir a oferta, não importa o custo. O gerenciamento da demanda por infraestrutura exige menos investimentos que o simples gerenciamento da expansão da oferta. E mais, gerenciar demanda cria mais externalidades ambientais e sociais.

A infraestrutura 4.0 ou a “Infra Verde”, como queiram, não existirá sem ações de gerenciamento racional da demanda pela infraestrutura ofertada. Em um País importador de capital como o Brasil, a SoHo se encaixaria facilmente no conceito de fazer mais com menos capital. Uma decisão de política pública pensada “fora da caixa”, que nos auxiliaria prosseguir com maior velocidade para uma infraestrutura sustentável, digitalizada e socialmente mais justa – com extensas pressões sobre as condições de ensino e aprendizado no Brasil.

A SoHo é o modelo de organização do trabalho que mais se encaixa com as soluções de geração distribuída de energias por fontes renováveis – inclusive com geradores individuais cada vez mais eficientes. A disseminação do “Small office e Home Office” amplia a demanda e acelera a diluição dos custos de implementação de múltiplas redes de conexão de dados (5G, fibra, satélites, etc.). Há um impacto significativo na redução da pressão por novos investimentos em sistemas públicos de mobilidade urbana, alongando a curva de desembolsos necessária para tais sistemas, pelo deslocamento dos picos a investir (em efeito semelhante ao do extinto “horário de verão”). O SoHo também contribuirá para a aceleração de soluções de telemedicina, diluindo as pressões sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). A reocupação dos bairros e pequenas cidades amenizam problemas de segurança pública e facilitam a construção de Habitações de Interesse Social (HIS) próximas da oferta de empregos. E, acima de tudo, o SoHo é por si só uma oferta firme por serviços e produtos locais que podem se interligar, em muitos exemplos, às cadeias globais de comércio – além de abrir novas oportunidades para soluções artesanais em produtos e serviços.

A lógica de que cidades adensadas exigem menos recursos para sistemas de infraestrutura precisa de uma reflexão maior à luz das oportunidades que novas tecnologias nos oferecem para o trabalho em SoHo. A distribuição da força de trabalho por bairros e pequenas ou médias cidades com muito mais qualidade de vida e menor impacto ao meio ambiente pode produzir externalidades muito maiores, do que as obtidas pelo simples adensamento urbano. O Brasil, como um país de desenvolvimento tardio, pode privilegiar modelos de organização espacial de seus centros urbanos, já voltados para o que está nascendo, em lugar de tentar repetir o que a história já anuncia deixar lá atrás.

A adoção da SoHo, no entanto, não é dizer ao funcionário que pode ficar um dia ou a semana toda em casa, conectando-se pela Internet com a solução de computação em nuvem ou software de acesso remoto aos servidores da empresa. Isto é usar rede social. Não é uma experiência de colaboração disciplinada como a SoHo deve ser. Toda organização que tentou fazer assim forneceu, aos ludistas modernos, os argumentos para manter corpos aprisionados em baias, quando a produção no Século XXI só precisa da entrega dos cérebros que podem mandar seus conhecimentos pela fibra ótica ou via satélites.

A SoHo não possui nada em comum com o modelo de organização das fábricas, escritórios e escolas nascida no Século XIX com a Revolução Industrial. A arquitetura organizacional orientada à projetos, baseada em times geograficamente distribuídos, instalados em “Small office e Home office” (SoHo) possui cultura, métodos, métricas e instrumentos muito próprios. É certo, alguns ainda carentes de um marco regulatório legal e infralegal que as suporte. Mas esta é uma discussão para uma próxima reflexão sobre o tema.

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